segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Keyra

“Retornar não é mais tão bom como era antes...” pensou Keyra quando ela e seus demais companheiros voltaram à Skan depois de derrotar Ogramum. A viagem foi cansativa, lenta e com algumas baixas durante o caminho.

Por mais que sentisse um alívio momentâneo por ter conseguido trazer de volta alguns sobreviventes, a tristeza e o medo nos olhar das pessoas da cidade pesavam na consciência de Keyra. Ela se sentia culpada por se sentir feliz em voltar com vida sendo que muitos ficaram pelo caminho. Sua cabeça estava imersa em confusão há bastante tempo. Ela sabia disso, mas não sabia ao certo como lidar com essa situação. Na verdade não sabia nem o que estava acontecendo direito, só sentia que algo havia mudado.

Depois de dois dias do retorno da Ordem da Liberdade ao reino, depois de cumprir com todos os “eventos protocolares” do rei, Keyra resolveu se distanciar um pouco do grupo para organizar seus pensamentos. Há tempos que ela não se sentia “ela mesma”. Estava sentindo falta de desvendar os mistérios de uma grande cidade, pois foi isso que a sua infância em Ilíria lhe proporcionou. Por mais que se considere uma pessoa do mundo (é seguidora fiel de Avandra), Keyra gosta de conhecer a fundo as cidades por onde passa, suas esquinas, ruas, prováveis rotas de fuga caso resolva “pegar emprestado” alguma coisa bela e brilhante, enfim, conhecer o lado da cidade onde a lei não alcança.

E, claro, fez contatos. Para ela, andar com as pessoas certas (ou erradas, depende do ponto de vista) é uma arma poderosa caso se precise alguma coisa no futuro. Desde que começou a andar com seus companheiros da Ordem ela começou a se sentir reprimida a fazer aquilo que faz melhor, que é roubar. Por isso dedicou grande parte do seu tempo envolvida com a guilda de ladrões da cidade, praticando suas habilidades em companhia de pessoas que a entendem e a aceitam como é. Conseguiu construir uma relação respeitosa com Aslom, que se intitulava o líder da guilda, e Raskon, o githzerai. Foi por meio deles que ela conheceu Barras, um hafling assassino bastante conhecido no submundo por sua maldade e seus feitos bizarros. Keyra conseguiu aprender algumas técnicas com ele – apesar dele não ser “melhor que ela”, somente diferente, teve outra vida, seguiu por outros caminhos

E foi em um encontro desses que ela acabou conhecendo Mal, um humano jovem que tentava iniciar sua vida em meio aos ladrões. Eles se conheceram quando ele, em vão, tentou roubar uma peça de cristal de uma taverna qualquer e foi surpreendido por guardas. Se não fosse pela Keyra e seus incríveis dotes de camuflagem no meio da multidão, ele estaria preso agora. Começaram a andar juntos e ela acabou encantada com a determinação dele de querer ser alguém na vida. Não queria ser temido, somente respeitado. De uma certa forma ele a lembrava dela durante a adolescência. No entanto, como é um rapaz de atitude, ele a acabou encantando quando decidiu que queria tê-la a qualquer custo. Por mais que fosse uma mulher linda, os homens se sentiam intimidados pelo seu estilo de vida e habilidades. Ele não.

Porém, ao mesmo tempo ela sentia que era errado estar ali com ele. Sentia que poderia estar “poluindo-o” com sua alma corrompida. Afinal, ela trabalhou como assassina de gente inocente por três meses de sua vida, quando ficaram presos no subterrâneo a mercê de drows. Ela matou muita gente e acabou dominando essa arte. Depois de um tempo, matar não era mais tão impactante como já fora um dia. Passou a ser algo normal, corriqueiro, sem importância. E o por incrível que pareça ela não foi criticada por seus companheiros por ter se sujeitado a isso. Nem mesmo o Arannis, que é a pessoa mais sensata e boa que ela conhece, se preocupou em ver se essa vida a havia traumatizado, ou corrompido. Parecia estar tudo bem por ele.

Numa noite, rumores tomaram a cidade dizendo que haveria um culto a um demônio chamado Asmodeus em uma base secreta escondida no submundo. Os clérigos dessa seita, apesar de serem poucos em Skan, tinham costume de realizar sacrifícios humanos com certa frequência e isso animou a Keyra e Mal a tentarem sabotar o ritual. Conseguiram informações de uma provável localização e mais alguns capangas para irem junto. No caminho, tiveram a seguinte conversa:

“Quando você vai embora?” Perguntou Mal, pela primeira vez tocando no assunto.

“Não sei ao certo, tenho que ver com o Arannis. Acho que amanhã teremos um almoço na casa do tal Mumur. Devemos nos decidir lá. Porquê?”

“Nada, só pra saber... Quem é esse Murmur afinal? Amigo de vocês?”

Keyra estava brincando com sua adaga, como é de costume quando faz algo não tão interessante.

“Não sei também, mas parece ser um bom goliath. Quando lutamos juntos teve uma hora que ele se colocou na minha frente para me proteger. Levou uma espadada que deve ter doido muito! Mas não é meu amigo, não. Mas já deve ser dos outros. Aqueles lá confiam em qualquer um.”

“E isso é ruim? Afinal, eles não são que nem nós...” Perguntou Mal impressionado com a súbita mudança de postura de Keyra.

“É ruim sim, pois da mesma forma que eles confiam, também esquecem! Mas já cansei de me preocupar e não quero mais pensar sobre isso.” disse Keyra, se mostrando impaciente.

Quando se aproximaram do local onde seria a entrada dos fundos de onde seria realizado o culto, Keyra guardou sua adaga e passou orientações aos demais. Ela e Mal iriam tentar entrar no templo escondidos e encontrar uma entrada alternativa para os outros. A ideia era que eles entrassem e criassem alguma distração para chamar a atenção dos clérigos. Uma vez feito isso, ela e Mal soltariam a vítima humana e levariam tudo de valor que encontrassem pelo caminho.

E foi justamente isso que fizeram. Sem muito trabalho Keyra conseguiu encontrar uma pequena entrada guardada por um homem somente. Escondendo-se nas sombras, posicionou-se atrás do guarda usou sua adaga para atingí-lo. Não o matou, mas atingiu um ponto específico que o fez desmaiar de dor. Mal acompanhava os passos da ladina com atenção e total admiração, tentando aprender alguma coisa. Ele a ajudou a esconder o guarda desmaiado em um canto nas sombras e, em seguida, aprendeu a desarmar uma fechadura. Entraram sem dificuldades, apesar de saberem que o local é bem guardado.

“Eu queria que você ficasse mais. Dez dias é muito pouco...” murmurou Mal, não conseguindo conter a ansiedade.

“Você realmente acha que esse é o melhor momento de falar sobre isso? Preste atenção no que estamos fazendo e fale baixo. Concentre-se!”

“Mas é a verdade! Porque você não fica? Parece que você nem gosta mais dos seus amigos da Ordem. Parece magoada...”

“Não fale assim!” disse Keyra interrompendo, irritada. “Você não os conhece. Não conhece nem a mim direito. E outra, gosto demais deles, são minha família. Portanto não gostaria de falar sobre isso contigo, ainda mais aqui, dentro da tocaia do inimigo!”

Estavam numa sala que mais parecia servir de estocagem de alimentos. Havia sacos com grãos, muita carne seca e barris de cerveja. Não havia muita coisa interessante lá dentro, mas tudo o que parecia ter um mínimo de valor era colocado dentro da bolsa mágica de Mal.

“Sabe que eu sempre quis ter uma dessas? A que nós temos fica com o Arannis e ele nunca me deixou ficar com ela.”

“Por que não? Ele não confia em você?”

“Confia. Er... quer dizer... Na verdade não sei. Eu confio neles com a minha vida, mas acho que eles não sentem o mesmo” disse Keyra, demonstrando certa tristeza.

Ela se aproximou de uma porta no final da sala. Conseguiu abrí-la e os dois deram de cara com um corredor longo, praticamente sem iluminação. Um pouco adiante viram uma porta à direita e imaginaram que talvez aquela seria uma boa entrada para os capangas que ainda esperavam do lado de fora.

“Quer tentar abrir essa porta?” Perguntou, tentando bancar a boa professora enquanto passava as ferramentas a Mal. Ele aceitou e demonstrou alegria enquanto se aproximava da porta. Ele perdeu uns 5 minutos até conseguir arrombar a fechadura. Nesse meio tempo, Keyra conseguiu dar uma boa andada pelo local e descobriu mais duas portas a frente, no final do corredor. Uma, aparentemente, levava ao salão onde estava para ser iniciado o ritual. A outra, a da esquerda, era um mistério.

Quando os capangas chegaram ao corredor, Keyra os orientou a esperarem alguns minutos antes de atraí-los para a cozinha – ela e Mal dariam um jeito de sabotar o altar. Ela não confiava nem um pouco naqueles sujeitos, mas tinha certeza que se tudo desse errado, os dois conseguiriam sair dali sem problemas. Ela também os alertou da possibilidade de mais guardas chegarem.

Ela e Mal entraram pela porta da esquerda. Era uma sala abandonada, cheia de entulhos e com o teto muito alto. Com muita agilidade Keyra conseguiu subir nos entulhos e desapareceu pelo teto escuro de madeira. Mal ficou um pouco desorientado até que ela reapareceu dizendo que havia encontrado uma passagem que os levaria exatamente acima do grande candelabro central. Dentro de poucos minutos os dois já estavam devidamente posicionados esperando os idiotas atraírem os clérigos até o corredor.

“Sabe, não é que eles não confiem em mim...” começou Keyra, com o olhar claramente desiludido “...é que às vezes eu me sinto descartável dentro do grupo, como se pudesse ser facilmente substituída a qualquer momento. Mais ou menos como foi com o Medrash. Ele desapareceu e depois o Ecniv surgiu e tudo ficou bem. Eu me irritei com isso, tratei ele muito mal no início porque senti que ele estava tomando o lugar de outra pessoa que me era muito importante. E o pior é que o pessoal entrou na dele rapidinho.”

Mal não se atreveu a dizer nada. Ele sabia que aquele era um desabafo que deveria estar entalado ali na garganta dela há bastante tempo.

“Uma vez, quando estávamos no mundo das sombras, comecei a discutir com todos do grupo para ficarmos lá para encontrarmos uma coisa, mas todos queriam sair. Eu fui a única que queria ficar. Discuti muito com todos e só depois fui perceber que os estava testando. Testando para saber se eles ainda gostavam de mim, se ainda me aguentavam, se ainda eram fiéis a mim assim como sou a eles...” Parou um instante. Respirou fundo e continuou “A possibilidade de nos separarmos me assusta muito. Gosto muito de todos, mas sinto que estou indo por um caminho que eles não podem aceitar. Acho que estou perdendo um pouco da fé na bondade. Há tanta dor no mundo, tanta maldade... Pra que lutar contra isso? Está sendo tão natural pra mim...”

Antes que Mal pudesse sequer ensaiar uma resposta, os clérigos começaram a se agitar logo abaixo. Dois deles entraram por uma porta que levava ao corredor que estiveram antes. Em seguida voltaram gritando e chamando os guardas para aquela direção. Era a hora! Os dois se seguraram no grande candelabro e em segundos já estava saqueando tudo o que parecia ser no mínimo interessante naquela sala. Era relativamente pequena, com um altar onde um garoto de 12 ou 13 anos estava amarrado, desorientado e totalmente drogado. O local era iluminado por velas avermelhadas, havia símbolos estranhos nas paredes, muitas ervas e poções, livros com caracteres estranhos, facas e adagas afiadas, sangue, muito sangue, e algumas “coisas brilhantes” bem bonitas. Mal andava pela sala desesperado jogando tudo o que via pela frente dentro da bolsa enquanto Keyra desamarrava o garoto.

Eles ficaram naquela brincadeira durante alguns minutos, quando o barulho das espadas começou a se aproximar pelo corredor. Keyra conseguiu sair da sala com o garoto nas costas, seguida imediatamente por Mal. Acabaram usando uma via alternativa para sair e em poucos segundos já estavam de volta nas ruas de Skan. Keyra ainda voltou para ver se algum dos capangas havia sobrevivido e retornou com apenas um deles, completamente ensanguentado.

“Meus amigos morreram, mas ao menos levamos todos conosco!” Disse o moribundo.

“Parabéns, vocês fizeram um trabalho maravilhoso!” Disse Keyra, em tom de sarcasmo.

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No dia seguinte, logo pela manhã, Mal não se conteve e retomou a conversa da noite anterior:

“Eu REALMENTE queria que você ficasse mais tempo comigo. Deixe-os e fica. Vai?”

“Bom dia, garoto.” Disse ela enquanto o beijava, ainda deitada na cama. “Para quem quer conquistar o mundo você anda muito emotivo. E olha que eu ainda nem conheço o sul, como você espera que eu aceite ficar em Skan...”

“Eu estou falando sério!” Disse ele, impaciente “você nem sabe se eles sequer confiam em você. Eu confio! Dou minha bolsa mágica pra você segurar o tempo todo! Toma, é sua!”

“Garoto...” ela achou encantador aquele desespero do rapaz recém-saído da adolescência doido para não perder sua primeira paixão. Pegou a bolsa e a colocou na mochila. Aquilo mexeu com ela mais do que imaginava. “Coloque os pés nos chão: desde o início sabíamos que isso aqui duraria mais ou menos dez dias. E você tem muito a crescer ainda, o mundo inteiro pra conhecer. Nunca nem viu um orc na vida!”

Ele ainda resmungou algumas coisas enquanto ela se vestia para ir ao almoço na casa de Murmur. Ele estava fazendo de tudo para convencê-la a ficar. “E porque você está insistindo nesse grupo que sequer confia em você?”

“Insisto porque sei que é unicamente por causa deles que eu ainda não me perdi, não me tornei uma assassina ou um monstro como o Barras. Ainda não estou pronta para abrir mão deles, não quero me tornar uma pessoa má... Mas, nunca se sabe o dia de amanhã!” falou enquanto saía pela porta, em direção a casa de Murmur, sorrindo.

No caminho encontrou Soveliss e Adrie. Se sentiu feliz, mas algo ainda continuava fora do lugar...


Por C.R.T

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